Embora muito se tenha escrito sobre a poesia cotidiana de Manuel Bandeira, gostaria de salientar o seu caráter dialético em que, a partir de um tema trivial, rotineiro, se é possível avaliar, questionar, fazer reflexões sobre o Homem, sobre o mais íntimo de seu ser, sobre questões universais que nascem a partir do nosso pequeno mundo, da casa, do ambiente que frequentamos diariamente, dos pequenos cantos e recantos em que nos permitimos a solidão que traz o devaneio e a força para a criação.
Alcides Vilaça, em seu ensaio “O Resgate Íntimo de Manuel Bandeira”, faz essa análise sobre a profundidade das coisas vulgares como ponto de partida para a singularidade:
“No impulso da simplicidade, com que logo nos cativa, a poesia de Bandeira projeta-nos a um só tempo no interior e na contra-mão do cotidiano: no interior, porque os elementos poéticos estão todos nele, reconciliáveis e familiares (inclusive os sonhos e as fantasias); e na contra-mão, porque a composição poética desses elementos, com seus critérios de proximidade atenta e afetiva, contraria o estado de dispersão e a impessoalidade que lhes impõe o ritmo moderno”.
Bandeira se apropria do mundo (pequeno) ao seu redor de maneira a restaurar o caos que presencia, juntando em estrofes a dispersão dos elementos contraditórios que estão fora e dentro de si. O poeta conquista um espaço só seu, amplia o sentido de solidão para qualificar o espaço, negando-o, recriando-o em poesia.
Em carta ao jovem Mário de Andrade, Bandeira mostra seu senso crítico não só em relação à forma – foco de atenção dos modernistas – mas também em relação ao tema tratado e à composição estrutural gramatical. A crítica ao “lirismo comedido” é anterior à parnasianisação formal da poesia: “Eu gosto de você -, mas muito, – quando exprime seu alto e puro lirismo na cortante ironia da linguagem terra-a-terra (…) Compreendo e sinto agudamente o seu lirismo geométrico que me dá um gozo análogo ao que me deu a Ética de Espinosa.” (Carta de 03 de outubro de 1922)
É nessa vertigem ao tradicional superficial que Bandeira encontra a possibilidade de refazer assimetricamente o mundo espacial em oposição ao mundo pessoal. Do conflito entre o socialmente permitido e o intimamente desejado nasce o sonho, o desejo, o objeto de confecção de sua poesia e a proposta de uma nova realidade socialmente mais justa e de sentimentos mais profundos. E é assim que podemos nos certificar de que, embora os temas do dia a dia permeiem sua poesia, estes são frutos de pesquisa, análise aprofundada da língua e da história e que o prazer que o leitor tem ao apropriar-se de sua poesia é compatível ao trabalho/esforço, ao empenho de criação (estrutural e de idéias) que Bandeira dispõe em cada ato, artesanalmente criativo, como um verdadeiro garimpo latentemente profícuo. A poesia bandeiriana é poesia de fidelidade, especialmente à memória, desde que esta esteja intimamente ligada ao mundo presente, à certificação de que o micro-espaço se define pelo acúmulo de vivências passadas, gerando incansavelmente um novo presente historicamente justificado.
Aproveito-me da citação feita por Davi Arrigucci, em que abre seu ensaio “A Festa Interrompida”, com um fragmento de “Em Busca do Tempo Perdido”, in: “A Prisioneira”, de Marcel Proust “[...] o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração”, para proclamar, na poesia de Bandeira, o trânsito inequívoco entre a memória racional e a memória emotiva. Fragmentos do que viveu e aquilo que se permitiu fixar em poemas, sensações tornadas concretas em palavras.
Manuel Bandeira: narrador de si mesmo