sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Grasna o pato


«(…) do mato vos trazem perdigões e laparinhos, o cabrito de mama, o tenro pato»


Diogo Bernardes


Os patos terão sido domesticados primeiramente na China há 4000 anos, constituindo a glória da cozinha chinesa



Aves palmípedes da ordem anseriforme, família das anserídeas e tribo das anatídeas, os patos terão sido domesticados primeiramente na china há quatro mil anos, mais coisa menos coisa. Com tal antiguidade e tantos séculos de prática quase ritual, não admira que eles constituam a glória, levada á perfeição, da cozinha chinesa. Ao prazer da degustação juntam conotações simbólicas (como, por exemplo, a da fidelidade conjugal, embora só os patos selvagens sejam monógamos) e poéticas. No Egipto tê-los-iam igualmente amansado cedo, pois figuram, entre outras vitualhas, na estela funerária de um magistrado de 1600 a.C Da Roma antiga sabe-se que os cidadãos ricos apenas lhes comiam o peito e os miolos. Em França parece que foram os espanhóis estabelecidos na Vendeia no reinado de Filipe O Belo (1268-1314), quem introduziu a criação de patos domésticos. Por cá, à falta de outros testemunhos, contentemo-nos com a gentil figura da «guardadora de pastos», reiterada da nossa mais vetusta poesia.



É evidente que os domésticos derivam dos patos bravos (sem ofensa para ninguém). Actualmente, as raças mais frequentes são o pato de Rouen, ou mudo, de carne muito fina, levemente avermelhada, cujo gosto peculiar lhe advém de não ser sangrado mas sim asfixiado, o pato de Nantes, menos volumoso, de carne delicada e saborosa, porém mais gorda, o pato de Barbaria, oriundo da América (e assim o apodo fica-lhe a matar), de carne mais fina e menos gordurosa, com um gosto ligeiramente almiscarado, e o pato de Pequim que, excepto no tamanho, suplanta todos. Falando de receituário, a mais divulgada fórmula francesa é a de pato com laranja, assado no forno. Conquanto de acesso condicionado (pelos maravedis), deve fazer-se um esforço para ir ao parisiense Tour d’Argent conhecer o mítico canard au sang ou canard a la presse (ao contrário do que possa parecer não é para jornalistas pobres: trata-se de prensa e não de imprensa), elaboradíssimo processo cuja descrição não cabe aqui. Ainda de origem gaulesa, a moda mais recente dos magrets, isto é, apenas os peitos (e lá se volta aos romanos), grelhados, salteados ou até fumados. Da China, o arquifamoso pato lacado, assado e previamente revestido duma cobertura complexa da qual revelam mel e soja. Nós, pobrezinhos mas honrados, contribuímos com pouco mais que arrozes de pato, cujo paradigma é o arroz de pato à moda de Braga. Não esquecer essa flor da civilização que é o foie gras: o de pato tem pelo menos tantos apreciadores como o de ganso.



É claro que no rol dos amadores estão aqueles amigos dos animais, conhecidos de ginjeira, que no caso não protestam pelas barbaridades alimentares que estas aves sofrem até à doença hepática que lhes provoca uma esplêndida e descomunal figadeira.



A utilidade do pato não se esgota na mesa.



A escrita deveu-lhe durante séculos o seu instrumento – a pena de pato. O nosso sono é-lhe tributário da macieza que leva ao bom sonho, as suas penas a forrarem as coberturas acolchoadas das nossas camas. Ora aí está.

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